domingo, 19 de dezembro de 2010

A EGREJA DO DIABO, por Machado de Assis

CAPITULO I

DE UMA IDÉA MIRIFICA

Conta um velho manuscripto benedictino que o Diabo, em certo dia, teve a idéa de fundar uma egreja. Embora os seus lucros fossem continuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde seculos, sem organisação, sem regras, sem canones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obsequios humanos. Nada fixo, nada regular. Porque não teria elle a sua egreja? Uma egreja do Diabo era o meio efficaz de combater as outras religiões, e destruil-as de uma vez.

—Vá, pois, uma egreja, concluiu elle. Escriptura contra Escriptura, breviario contra breviario. Terei{2}a minha missa, com vinho e pão á farta, as minhas predicas, bullas, novenas e todo o demais apparelho ecclesiastico. O meu credo será o nucleo universal dos espiritos, a minha egreja uma tenda de Abrahão. E depois, emquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha egreja será unica; não acharei diante de mim, nem Mahomet, nem Luthero. Ha muitos modos de affirmar; ha só um de negar tudo.

Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto magnifico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para communicar-lhe a idéa, e desafial-o; levantou os olhos, accesos de odio, asperos de vingança, e disse comsigo:—Vamos, é tempo. E rapido, batendo as azas, com tal estrondo que abalou todas as provincias do abysmo, arrancou da sombra para o infinito azul.

CAPITULO II

ENTRE DEUS E DIABO

Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os seraphins que engrinaldavam o recem{3} chegado, detiveram-se logo, e o Diabo deixou-se estar á entrada com os olhos no Senhor.

—Que me queres tu? perguntou este.

—Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do seculo e dos seculos.

—Explica-te.

—Senhor, a explicação é facil; mas permitti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor logar, mandai que as mais afinadas citharas e alaúdes o recebam com os mais divinos córos...

—Sabes o que elle fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura.

—Não, mas provavelmente é dos ultimos que virão ter comvosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vasia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma egreja. Estou cançado da minha desorganisação, do meu reinado casual e adventicio. É tempo de obter a victoria final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não accuseis de dissimulação... Boa idéa, não vos parece?

—Vieste dizel-a, não legitimal-a, advertiu o Senhor.{4}

—Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor proprio gosta de ouvir o applauso dos mestres. Verdade é que n'este caso seria o applauso de um mestre vencido, e uma tal exigencia... Senhor, desço a terra; vou largar a minha pedra fundamental.

—Vai.

—Quereis que venha annunciar-vos o remate da obra?

—Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cançado ha tanto da tua desorganisação, só agora pensaste em fundar uma egreja?

Diabo sorriu com certo ar de escarneo e triumpho. Tinha alguma idéa cruel no espirito, algum reparo picante no alforge da memoria, qualquer cousa que, n'esse breve instante da eternidade, o fazia crer superior ao proprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:

—Só agora conclui uma observação, começada desde alguns seculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande numero comparaveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxal-as por essa franja, e trazel-as todas para minha egreja; atraz d'ellas virão as de seda pura...

—Velho rhetorico! murmurou o Senhor.{5}

—Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupillas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do peccado. Vêde o ardor,—a indifferença, ao menos,—com que esse cavalheiro põe em lettras publicas os beneficios que liberalmente espalha,—ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaesquer d'essas materias necessarias á vida... Mas não quero parecer que me detenho em cousas miudas; não fallo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma commenda... Vou a negocios mais altos...

N'isto os seraphins agitaram as azas pesadas de fastio e somno. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de supplica. Deus interrompeu o Diabo.

—Tu és vulgar, que é o peior que póde acontecer a um espirito da tua especie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assumpto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assumpto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os{6} signaes vivos do tedio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que elle fez?

—Já vos disse que não.

—Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufragio, ia salvar-se n'uma taboa; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a taboa de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum publico: a agua e o céu por cima. Onde achas ahi a franja de algodão?

—Senhor, eu sou, como sabeis, o espirito que nega.

—Negas esta morte?

—Nego tudo. A misanthropia póde tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos outros, para um misanthropo, é realmente aborrecel-os...

—Rhetorico e subtil! exclamou o Senhor. Vai, vai, funda a tua egreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai! vai!

Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impuzera-lhe silencio; os seraphins, a um signal divino, encheram o céu com as harmonias de seus canticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as azas, e, como um raio, caiu na terra.{7}

CAPITULO III

A BOA NOVA AOS HOMENS

Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula benedictina, como habito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinaria, com uma voz que reboava nas entranhas do seculo. Elle promettia aos seus discipulos e fieis as delicias da terra, todas as glorias, os deleites mais intimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para rectificar a noção que os homens tinham d'elle e desmentir as historias que a seu respeito contavam as velhas beatas.

—Sim, sou o Diabo, repetia elle; não o Diabo das noites sulphureas, dos contos somniferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e unico, o proprio genio da natureza, a que se deu aquelle nome para arredal-o do coração dos homens. Vêde-me gentil e airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai d'aquelle nome, inventado para meu desdouro, fazei d'elle um trophéu e um labaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...{8}

Era assim que fallava, a principio, para excitar o enthusiasmo, espertar os indifferentes, congregar, em summa, as multidões ao pé de si. E ellas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na bocca de um espirito de negação. Isso quanto á substancia, porque, ácerca da fórma, era umas vezes subtil, outras cynica e deslavada.

Clamava elle que as virtudes aceitas deviam ser substituidas por outras, que eram as naturaes e legitimas. A soberba, a luxuria, a preguiça foram rehabilitadas, e assim tambem a avareza, que declarou não ser mais do que a mãi da economia, com a differença que a mãi era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defeza na existencia de Homero; sem o furor de Achilles, não haveria a Illiada: «Musa, canta a colera de Achilles, filho de Peleu...» O mesmo disse da gula, que produziu as melhores paginas de Rabelais, e muitos bons versos de Hyssope; virtude tão superior, que ninguem se lembra das batalhas de Lucullo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez immortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem litteraria ou historica, para só mostrar o valor intrinseco d'aquella virtude, quem negaria que era muito{9} melhor sentir na bocca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os máus boccados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo promettia substituir a vinha do Senhor, expressão metaphorica, pela vinha do Diabo, locução directa e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fructo das mais bellas cepas do mundo. Quanto á inveja, prégou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que chegava a supprir todas as outras, e ao proprio talento.

As turbas corriam atraz d'elle enthusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloquencia, toda a nova ordem de cousas, trocando a noção d'ellas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.

Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que elle dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluia: Muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, elle não exigia que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros dextros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuista do tempo chegou a confessar que era um monumento de logica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercicio de um direito{10}superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéo, cousas que são tuas por uma razão juridica e legal, mas que, em todo caso, estão fóra de ti, como é que não pódes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, cousas que são mais do que tuas, porque são a tua propria consciencia, isto é, tu mesmo? Negal-o é cair no absurdo e no contraditorio. Pois não ha mulheres que vendem os cabellos? não póde um homem vender uma parte do seu sangue para transfundil-o a outro homem anemico? e o sangue e os cabellos, partes physicas, terão um privilegio que se nega ao caracter, á porção moral do homem? Demonstrando assim o principio, o Diabo não se demorou em expôr as vantagens de ordem temporal ou pecuniaria; depois, mostrou ainda que, á vista do preconceito social, conviria dissimular o exercicio de um direito tão legitimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hypocrisia, isto é, merecer duplicadamente.

E descia, e subia, examinava tudo, rectificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injurias e outras maximas de brandura e cordialidade. Não prohibiu formalmente a calumnia gratuita, mas induziu a exercel-a mediante retribuição, ou pecuniaria,{11} ou de outra especie; nos casos, porém, em que ella fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, prohibia receber nenhum salario, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as fórmas de respeito foram condemnadas por elle, como elementos possiveis de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a unica excepção do interesse. Mas essa mesma excepção foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este o sentimento applicado e não aquelle.

Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana. Com effeito, o amor do proximo era um obstaculo grave á nova instituição. Elle mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolvaveis; não se devia dar ao proximo se não indifferença; em alguns casos, odio ou despreso. Chegou mesmo á demonstração de que a noção de proximo era errada, e citava esta phrase de um padre de Napoles, aquelle fino e lettrado Galliani, que escrevia a uma das marquezas de antigo regimen: «Leve a breca o proximo! Não ha proximo!» A unica hypothese em que elle permittia amar ao proximo era quando se tratasse de amar as damas{12} alheias, porque essa especie de amor tinha a particularidade de não ser outra cousa mais do que o amor do individuo a si mesmo. E como alguns discipulos achassem que uma tal explicação, por metaphysica, escapava á comprehensão das turbas, o Diabo recorreu a um apologo:—Cem pessoas tomam acções de um banco, para as operações communs; mas cada accionista não cuida realmente se não nos seus dividendos: é o que acontece aos adulteros. Este apologo foi incluido no livro da sabedoria.

CAPITULO IV

FRANJAS E FRANJAS

A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de velludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa ás ortigas e vinham alistar-se na egreja nova. Atraz foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A egreja fundára-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma lingua que não a traduzisse, uma{13} que não a amasse. Diabo alçou brados de triumpho.

Um dia, porém, longos annos depois notou o Diabo que muitos dos seus fieis, ás escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, ás occultas. Certos glotões recolhiam-se a comer frugalmente tres ou quatro vezes por anno, justamente em dias de preceito catholico; muitos avaros davam esmolas, á noite, ou nas ruas mal povoadas; varios dilapidadores do erario restituam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos fallavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros.

A descoberta assombrou o Diabo. Metteu-se a conhecer mais directamente e mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incomprehensiveis, como o de um droguista do Levante, que envenenára longamente uma geração inteira, e, com o producto das drogas soccorria os filhos das victimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camellos, que tapava a cara para ir ás mesquitas. O Diabo deu com elle á entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; elle negou, dizendo que ia alli roubar o camello de{14}um drogman; roubou-o, com effeito, a vista do Diabo e foi dal-o de presente a um muezzin, que rezou por elle a Allah. O manuscripto benedictino cita muitas outras descobertas extraordinarias, entre ellas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apostolos era um calabrez, varão de cincoenta annos, insigne falsificador de documentos, que possuia uma bella casa na campanha romana, telus, estatuas, bibliotheca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a metter-se na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de um conego, ia todas as semanas confessar-se com elle, n'uma capella solitaria; e, comquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas acções secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. Diabo mal póde crer tamanha aleivosia. Mas não havia duvidar; o caso era verdadeiro.

Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de reflectir, comparar e concluir do expectaculo presente alguma cousa analoga ao passado. Voou de novo ao céu, tremulo de raiva, ancioso de conhecer a causa secreta de tão singular phenomeno. Deus ouviu-o com infinita complacencia; não o{15} interrompeu, não o reprehendeu, não triumphou, sequer, d'aquella agonia satanica. Poz os olhos n'elle, e disse-lhe:

Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? é a eterna contradicção humana.

FIM DA EGREJA DO DIABO.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

RELEITURAS

Um sítio muito interessante, cheio de textos preciosos. Recomendado:

http://www.releituras.com/index.asp

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Conferência com a Prof.ª Dr.ª Carolina de Saboya

É já hoje, dia 6 janeiro, a conferência com a Prof.ª Dr.ª Carolina Campos de Saboya, coordenadora para o Brasil da Fundação Art and Life, e professora da UNIFOR. Nela serão abordados temas das relações culturais Brasil / Portugal.
É na Universidade Lusófona do Porto, às 18.30h.
A entrada é livre.